A Sabedoria Oculta - Botticelli muito além da simples beleza (primeira parte)
A Vênus de Berlim: auxílio da Astrologia foi fundamental em uma Florença dominada pelo medo.
Prof. Átila Soares da Costa Filho
O período de 1480-81 certamente foi emblemático na produção de “Sandro” Botticelli (Alessandro di Mariano Filipepi). Este artista florentino, um dos grandes da pintura italiana da segunda metade do século XV, começaria aí a desenvolver certa peculiaridade na maioria de suas obras de devoção. São João Batista, aquele que “preparou o caminho” para a vida pública de Cristo, padroeiro da cidade natalícia de Botticelli, seria o protagonista.
Baseando-nos nas anotações do também pintor e contemporâneo Giorgio Vasari, vemos um Botticelli como talento espirituoso que, em sua maturidade desenvolveria um perfil notadamente místico. Para tal, vejamos algumas de suas obras-primas, como o “Retábulo Bardi” de 1485, ou “Palas e o Centauro”, provavelmente da mesma época; ou, ainda, a “Natividade Mística”, de 1500. Além do mais, Sandro costumava embutir poderes de talismã às várias de suas criações no intuito de trazer benesses ao lar onde se destinassem. De fato, coincidindo com o início da iconografia “joanita” do pintor, alguns estudiosos apontam que aquela produção passaria a se tornar mais “enigmática”. A razão seria a proximidade do ano 1500 quando, segundo certas interpretações da Cabala e à Astrologia, viria o fim do mundo. Aliás, o artista estava se acostumando a estudar as doutrinas gnósticas, em voga nos círculos mais intelectuais. Não obstante, em várias de suas pinturas marianas vemos um sol em formato de olho costurado no manto da Virgem à altura do ombro, típico da simbologia hermética. Este sol é o “Olho que a tudo vê”: Hórus segundo os egípcios, ou Deus-Pai na tradição judaico-cristã. A inclusão de raios e labaredas neste detalhe nos parece indicar a catequese da virgindade trina de Maria: pré-humanista, pré-neoplatônica e, provavelmente, aprendida com o monge dominicano Girolamo Savonarola, um extremista da cristandade que toma poder após a instalação da República de Florença. As três chamas - na verdade, estrelas – correspondem à condição de virgem no antes, no durante e no depois do nascimento de Cristo. Esta idéia pictórica remonta dos bizantinos, mas aqui, se limita à figura central do Sol-Pai. Alguns outros exemplos são sua “Madonna do Livro”, ou a “Madonna e o Menino com S.João Batista Criança” (em colaboração com Jacopo del Sellaio, seu discípulo).
A “Madonna” de Botticelli e Del Sellaio: esoterismo puro enraizado na fé cristã.
Mais tarde, a influência de Savonarola o conduziria a uma vertente mais austera em sua busca espiritual. Ora, era de conhecimento geral que Botticelli mantinha estreita amizade com o monge, sobretudo após certas predições suas lançadas contra os Médici terem, de fato, se concretizado nos anos 1490 – de que seriam expulsos do controle da cidade. Provavelmente outras profecias - não menos terríveis - de Savonarola também contribuíram para o misticismo de Botticelli. Os constantes e ferozes ataques do monge contra o Papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia) ainda serviriam para piorar um ambiente já cheio de tensão, à mesma proporção em que a autoridade e temor pelo dominicano crescia. Sandro chegara a adotar a meditação como conduta de vida... e a tornar-se mais introspectivo.
O “HOMO UNIVERSALIS”
Na verdade, não podemos falar no fenômeno do Renascimento italiano sem considerar esta “revisão espiritual” patrocinada pela importação de contingentes de gregos fugidos da invasão turca à Constantinopla em 1453. Dentre eles havia Gemistos Plethon (considerado a própria encarnação de Platão) cujos discursos e ensinamentos ocultos vêm a impressionar os poderosos Medici. Estes, por sua vez, contratam o filósofo Marsílio Ficino para traduzir integralmente textos gregos que eram base das ideias de Plethon. Ficino ainda fundaria a Academia de Careggi em Florença nos moldes das de Pitágoras e de Platão. Note que a execução das duas mais famosas obras de Botticelli, “Primavera” (1478) e “O Nascimento de Vênus” (1485), foi orientada pelas cartas de Ficino, e se formam a partir de alegorias esquemáticas com estudos de mapas astrais como suporte. Enfim, foi uma época em que o clamor por uma sabedoria maior lançava as mais brilhantes e ousadas mentes da Itália às zonas mais antigas e obscuras dos ritos e do pensamento na tentativa de se descobrir onde residiria a origem do ser e qual sua essência. O “Livro de Toth”, o “Corpus Hermeticum”, miticamente atribuído ao deus grego Hermes Trismegisto (por sua vez, identificado como Toth), os “Versos Áureos” de Pitágoras, o “De Triplici Vita”, obra original de Ficino, o Rosarium Philosophorum e o Re Metallica de Agrícola se tornariam objetos de curiosidade e fonte de estudos nos altos círculos filosóficos e científicos. Queria-se fazer nascer um novo Homem, o qual fosse capaz de enxergar a Criação e a realidade das coisas de maneira multifacetada. Michelangelo, na busca pela beleza divina, é um bom exemplo.
Detalhe de “A Virgem com o Menino e S.João Batista”, de Botticelli: presença montanhesa constante.
O FATOR ESSÊNIO
Analisando a iconografia do artista, em termos de estrutura, identificamos, com muita freqüência, dois fatores interligados tendo o gnosticismo essênio como coluna: a presença de São João Batista; e a representação da típica montanha dos desertos da Judéia atrás de si, a qual remete à idéia de fuga dos antigos padres e onde os essênios criaram uma sociedade a 170 a.C. Ora, o fato de que João Batista fosse um membro da seita dos essênios foi algo levado muito a sério desde sua morte no século I – talvez, a 30 d.C. -, e considerado quase um dogma, especialmente entre algumas filosofias orientais que alcançariam a contemporaneidade. Tal teoria, além da tradição, ganhou força após a descoberta do Evangelho dos Doze Santos em 1880, e do Evangelho Essênio da Paz em 1923. Atualmente, historiadores e críticos se dividem, apoiando ou não a idéia do Batista essênio, mas o que isto tudo tem a ver com Botticelli? Na verdade, a filosofia de vida atribuída ao Batista cruza com vários pontos de referência deixados pelo modus vivendido artista. Por exemplo, ignora-se por completo que ele tivesse tido filhos, ou, mesmo, uma parceira. Pois, caso houvesse ocorrido algum envolvimento sentimental “regular” em sua vida, não há razões aparentes para que isto nunca fosse revelado pelas suas belas imagens femininas... ou textualmente. Esta peculiaridade foi até capaz de gerar uma acusação de homossexualismo contra o pintor após a morte de Savonarola, mas nada nunca foi comprovado. Note que também os essênios praticavam o celibato na busca extrema à purificação corporal.
O Codex Romanoff de Leonardo da Vinci nos informa, ainda, que Botticelli era vegetariano – como os essênios. Estes, em relação ao Reino Animal, apenas se alimentavam de peixes com reprodução assexuada, “imaculada”, e ainda vivos. A razão é que, assim, os mesmos não estariam comendo matéria morta, uma impureza. Somado a isto, também há todo um aspecto místico em sua personalidade que se entrelaça à figura do Batista. Mas qual era a significação do culto aos santos durante a Itália renascentista, já que havia tamanho apego aos mesmos os quais, de certa forma, tomavam o lugar dos antigos deuses pagãos? A seguir, trataremos sobre a real importância de São João Batista.
BIBLIOGRAFIA
BACCARINI, Enrico; PINOTTI, Roberto. Itália Esotérica. São Paulo: Madras, 2005.
DELUMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
MANDEL, Gabriele. The Complete Paintings of Botticelli. Introdução de Michael Levey. Harmonsworth: Penguin Books, 1985.
ROST, L. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudepígrafos do Antigo Testamento e aos Manuscritos de Qumran. São Paulo: Paulinas (Paulus), 1981.
VASARI, Giorgio. Vidas de pintores, escultores y arquitectos ilustres. Buenos Aires: El Ateneo, 1945. Leitura selecionada: Vida de Botticelli.